sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Para-se no tempo, muitas vezes, à espera de mudanças


Tenho uma vida aparentemente privilegiada, pela qual tenho batalhado ao longo dos meus praticamente vinte anos de estudos. É isso aí: oito anos do antigo ensino primário que se estendia até a oitava série (e era o 'primeiro grau'), o qual hoje em dia vai da primeira até a nona série, que chama de Ensino Fundamental, mais três de ensino médio (o antigo (?) 'segundo grau'), seguidos de quatro de graduação - uma licenciatura plena em Letras, seguido de um mestrado que acabou se tornando uma especialização em Linguística, um aperfeiçoamento em Estudos Africanos e um mestrado recém-concluído em Letras, além de uma infinidade de cursos, que se os fosse mencionar aqui um por um chatearia mais ainda você que está se esforçando em continuar a leitura deste texto, que vou chamar de crônica. Se fosse resumir matematicamente a minha vida acadêmica, a fórmula seria esta: 8+3+4+2+1+2, justamente para chegar aos vinte anos mencionados, anteriormente...

Como estou com trinta e dois anos, aparentemente, fiquei sem estudar por doze deles e encontro sete deles na impossibilidade de oferta do Estado, visto que na época em que nasci, no seio de uma família pobre, o Acesso à gratuidade na educação se dava a partir dos sete anos e os outros cinco a gente “justifica” uns três de exercício de estágio probatório na função pública e acrescenta um ano de ensino no exterior, em missão oficial – quando fui para o Timor-Leste... E se consultarem o tal de Lattes, vocês vão pensar que já nasci em alguma instituição de ensino e, do berçário, já comecei a fazer cursos e juntar papéis... Hehe!

Para dar um caráter menos memorialista e voltar à crônica, começo com a ideia de que a escola pode refletir uma espécie de “extensão” da casa da gente... Quando você entra, às dezesseis horas, numa sala de 8ª. série e encontra um tapete de um material de insumos humanos que fora retirado ao final da manhã, não consegue sequer pensar que foi Aladim quem trouxe esse tapete ou a nuvem de gafanhoto que devoraria a lavoura que as pessoas que ali estão não plantaram... Penso que o material todo deixado ali é um retrato do que essas pessoas fazem em suas casas e nas ruas, fruto do aprendizado com as pessoas com quem convivem e reflito que, pelo menos, por aproximadamente cinquenta minutos da vida deles, por semana, eu faço parte da vida deles, quando eles deixam, obviamente... O que são cinquenta minutos em meio a dez mil e oitenta? Sim, é isto, em termos de minutos, que tem uma semana... Que poder tenho eu de transformação social desses quarenta sujeitos? Perturbar-me só precisar pensar isto!!!

Quando tomar conta da casa da gente ou do espaço que a gente tem (todos têm algum), que uns chamam de “administração do lar” ou “gestão” parece impossível, é igualmente impossível conter os insumos do tal tapete mencionado no parágrafo anterior. Gente precisa de gente para ajudar e nesse contato de gente com gente relações de poder são negociadas e estabelecidas, às vezes, até impostas... Conto com Nilza para ajudar-me na administração do lar há mais de dois anos e o acordo é que ela venha duas vezes na semana, meio expediente, o que seria das oito ao meio-dia e faça o seu máximo para deixar o ambiente limpo e, em troca, pago-lhe o que manda o figurino: um quinze avos do salário mínimo para o que se chama de “diária” ou faxina...

Acontece que, com o passar do tempo, as pessoas vão ficando acomodadas e isso também acontece com o professor, que se forma em mil novecentos e antigamente... Hehe! Eu me formei em dois mil!!! Isso é uma vantagem? Não sei!!! Esse professor se forma nesse tempo e não continua a estudar, muitas vezes; mas não é só o professor que para no tempo... Há muita gente parada no tempo, à espera de transformações. Há muito professor em sua zona de conforto, esperando que um sindicato que está completamente comprometido com a ideologia do atual governo, aguardando melhores tempos... Com Nilza não seria diferente... Passei a notar que, embora o combinado fosse que ela passasse quatro horas, em média, aqui em casa, ela estava passando duas, duas e meia... Um pouco mais quando eu estava em casa, bem menos quando eu estava distante. E na ausência do gato, não fazem os ratos a festa? Mas por que será que eles fazem a festa?

Hoje, cheio de coisas na cabeça e com muita vontade de escrever tudo para não esquecer nada, mas sabendo que se escrevesse e fosse ler, ela não me daria a mínima atenção, fiquei em casa, cronometrei o tempo de sua chegada, a preparação do café, o tempo de saboreá-lo e o início efetivo de sua prestação de serviço... Uma hora se passou... Comparei com terça-feira, que ao chegar, eu já saíra para trabalhar e por volta das onze horas, ligo para casa e nem sinal dela por lá... Quem aqui nunca ligou para uma instituição pública e o telefone chamou, chamou, chamou até cair? Há os casos sinistros... Chama, chama, ninguém atende... Depois só dá ocupado!!! Essa é outra “histoire”...

Como funcionário público, minha residência transformara-se também numa extensão da repartição pública na qual presto serviço e da qual me ausentara por mais de dois anos para requalificar-me com o mestrado... Conversei com ela, em passant, para não assustá-la... – Percebe que passamos uma hora da hora que você chegou até agora só no café da manhã? – Hum hum... – Como será que você consegue dar conta de sessenta e dois metros quadrados, que é pequeno, mas com coisas dentro para organizar? (...) Silêncio!!!

Mostrei-lhe como estavam as tampas de potes com mantimentos, arrastei o fogão e a máquina de lavar e os vidros da cozinha... A própria natureza encarregara-se de modificar-lhes a cor que o homem tinha impresso e resquícios daquilo que aqueles alunos da oitava série deixam no chão estavam também na minha cozinha. Minha casa, definitivamente, tornara-se uma extensão da escola.

Gasto cerca de dez por cento do meu vencimento líquido com a manutenção da casa, distribuídos entre pagamento pela prestação de serviço, passagens de ida e volta e aquisição de material de limpeza: detergente, desinfetante, sabão em pó, lâminas de aço, lustra-móvel etc... E estava vendo dez por cento de minha força de trabalho ir pelo ralo da pia de mármore recém-adquirida, na cozinha recém-reformada, que me custara pelo menos vinte e cinco vezes mais do que gasto para manter... Logo, prejuízo à vista, correto? Quando a gente não mantém, a tendência é deteriorar, ficar feio, imundo; mais ou menos como o que têm feito com aquela sala de oitava série, do colégio onde trabalho... Nilza passou exatamente uma hora e quarenta e cinco minutos, nesse ambiente, e, eu mesmo, pela primeira vez, peguei a escada e olhei em cima dos armários para verificar que de fato ainda estavam limpos...

Volto à matemática, e percebo que uma hora do café da manhã mais quase duas horas só na cozinha já seriam suficientes para dar onze horas – exatamente o horário que ela saíra na terça-feira, quando eu não estava em casa...

Há muitos motivos para eu ainda estar com Nilza me prestando serviços. Não é exatamente a amizade e a falta dela que faria com que meu coração ficasse partido, por exemplo. Há muitos profissionais que não farão a menor falta se saírem hoje das instituições onde trabalham. A vida das pessoas continua independentemente desses laços, na maioria das vezes.

Assim tem andado a educação, sob meu olhar: pessoas fingindo que trabalham, pessoas prestando um serviço capenga, pessoas sem a mínima consideração pelo patrimônio que lhes confiam e pessoas sem uma fiscalização mínima... Quem disse que o Controle só tem aspectos negativos? No final do expediente, lá por volta das treze horas, chamei-a para conversarmos: é óbvio que não é possível fazer tudo e que partes devem ser priorizadas, mas comprometer-se a prestar um serviço e fazê-lo pela metade é um dos lados ocultos da desonestidade. Se essa medida surtirá efeito, só o tempo vai me mostrar; só não posso ficar parado no tempo, esperando que mudanças aconteçam no meu próprio lar, mas posso recordar o provérbio chinês, que diz "Antes de começar a reformar o mundo, dá três voltas em torno de tua própria casa."

Um comentário:

Valkíria disse...

Texto excelente!!! Matematicamente correto, reflexão sobre como nos comportamos, sobre honestidade, zelo e compromisso!! Gostei!! Se queremos mudança, que essa mudança aconteça primeiro em nós!! Precisamos sair da periferia dos nossos pensamentos, da zona de conforto. Afinal, o olhar do outro está sempre presente!!